Ainda sobre a delação de Mauro Cid, autointitulada “sombra” de Bolsonaro e que, em seu depoimento, teria afirmado que a trama golpista foi discutida na presença dos comandantes das Forças Armadas. O que se soube foi o que se dizia à boca miúda nos corredores de Brasília e que aponta para uma daquelas obviedades ululantes, como bem descreveu Nelson Rodrigues:
Bolsonaro sempre foi golpista.
Estamos diante de um fato, constatável e comprovado pelas inúmeras falas, ditas e reiteradas pelo ex-presidente durante toda a sua trajetória política.
Bolsonaro sempre foi golpista e colocou em execução a trama contra a democracia desde o seu primeiro dia de mandato como presidente da República (o presidente grafado em minúsculas é proposital). Desde o início de seu mandato, conspirava ao modo do húngaro, Viktor Orbán. Eleito, Bolsonaro e seus generais “cupinizaram” a democracia, devorando-a por dentro, esfacelando as instituições. Com os pilares da república corroídos seria mais fácil ter sucesso em sua cruzada golpista. Depois de desmoralizar o parlamento, liberando as emendas secretas e dando ao presidente da Câmara as chaves do cofre, terceirizando a administração, Bolsonaro partiu para cima do Supremo Tribunal Federal. Ataques disparados diuturnamente por ele, seus filhos, ministros e militantes bolsonaristas. Na noite de 13 de junho de 2020, por exemplo, apoiadores do ex-presidente dispararam fogos de artifícios contra a sede do Supremo Tribunal com ofensas pesadas contra os membros da corte. Aos berros, perguntavam se os ministros tinham entendido o recado.
Desde a eleição de 2018, Bolsonaro atacou a higidez do processo eleitoral, semeando na população a desconfiança nas urnas – que o elegeram há décadas, afirmando que a sua vitória contra Haddad teria acontecido ainda no primeiro turno e que, por conta da suposta fraude eleitoral, não teria sido declarado eleito em primeiro turno.
Era a construção de uma narrativa para justificar um golpe em caso de derrota na tentativa de reeleição.
Na campanha em 2022 ele usou de todos os expedientes fraudulentos, comprando votos com o "pacote de bondades" e a ajuda do Centrão (diga-se!). Por fim, com a derrota, a surrada contestação das urnas e o encaminhamento de uma minuta golpista, sabemos agora apresentada aos comandantes das três forças militares.
Enquanto tramava o golpe com seu núcleo duro de governo, o gabinete do ódio alimentava as redes sociais e grupos de mensagem com diretrizes para o ataque golpista na praça dos três poderes.
Bolsonaro nunca escondeu suas ideias autoritárias, nem dos eleitores e nem dos militares que estiveram ao lado dele nos últimos anos.
Esse fetiche de atribuir a democracia aos militares - reproduzido agora pelo ministro da Defesa, José Múcio, contraria a História e precisa acabar.
A delação de Mauro Cid, considerado “filho” de Bolsonaro e que contava com uma acomodação própria no Palácio da Alvorada, aponta para o fato de que as reuniões nas quais se tramou o golpe contra o País, aconteceram o tempo todo em que Bolsonaro esteve no comando da nação. Indica que após o segundo turno das eleições, não eram uns e outros, nem mesmos meros oficiais que delas participavam, eram os próprios comandantes das três forças. Ok que tenham ido, desavisadamente na primeira reunião em que se apresentou a trama golpista. Mas se não concordavam com a ideia, por que razão os comandantes das FA compareceram nos demais encontros? O fato de terem ouvido a trama golpista e não terem dado imediata voz de prisão ao proponente, é crime e é grave. O fato de ficarem em silêncio quando sabiam do propósito, é crime também. Temos que rechaçar qualquer proposta de atribuir aos militares a preservação da democracia. A eles, que sabiam da sanha predatória contra a democracia e nada fizeram, nada devemos. Ao contrário, somos credores. Eles que nos devem explicações históricas por tudo o que vivemos durante a ditadura e pela participação na política e no governo neofascista que foi derrotado na eleição de 2022. Jamais nos esqueçamos de que Bolsonaro não é causa, é consequência deles e da falta de um acerto de contas histórico. Se quisermos avançar, precisamos acertar as contas com o passado. Os militares nos devem explicações das vidas perdidas pelo negacionismo na pandemia da COVID 19, pelo crescimento exponencial da violência durante o governo cívico-militar de Bolsonaro, pelos acampamentos golpistas nas frentes dos quartéis, frequentados e organizados pela “família militar”, ambiente fértil para toda espécie de ato terrorista, como o que quase explodiu o aeroporto de Brasília.
Que fique bem claro que nós civis não devemos a nossa liberdade e a democracia aos militares. Não devemos nada a eles. Se devemos algo pelo fracasso do golpe, foi àqueles que defenderam a democracia diuturnamente nos últimos quatro anos: à mídia independente, aos militantes, aos trabalhadores e líderes progressistas e de esquerda, aos advogados que defenderam, de maneira firme, o estado democrático de direito e ao STF. Enfim, aos brasileiros comprometidos com a democracia. Fomos nós, os verdadeiros patriotas, quem defendemos a democracia da sanha golpista que, como um canto de sereia, encantou boa parte das Forças Armadas.
Que venham à luz todos os fatos. Que sejam expostos, à clareza solar, todos os inimigos da nação. Democracia, ideais republicanos e estado democrático de direito acima de tudo! Eis a virtuosa sentença.
Florestan Fernandes Júnior é jornalista, escritor e Diretor de Redação do Brasil 247
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