No Brasil, a cada quatro horas uma mulher sofre alguma violência e o número de vítimas registrado alcançou a marca de 2.423 casos em 2022, de acordo com a Rede de Observatórios da Segurança. No país, as pautas em defesa dos direitos das mulheres parecem ter sofrido um atraso diante do que a realidade impôs nos últimos anos.
Após o impeachment de Dilma Roussef (PT), a primeira mulher presidente do Brasil, e durante os seis anos de governos alinhados ao conservadorismo, a maioria das pautas feministas foi relegada ao segundo plano ou mesmo paralisada.
Por isso, em 2023, o Dia Internacional da Mulher vem carregado de um simbolismo de retomada e com uma extensa luta por direitos, de quem acumulou manifestações e teve praticamente nenhuma resposta nesse período.
Foram ouvidas mulheres de diversos segmentos da sociedade para entender que prioridades movem o movimento pelos direitos das mulheres neste 8 de março (8M).
Para a antropóloga Jô Meneses, integrante da coordenação do Fórum de Mulheres de Pernambuco, o próprio tema escolhido para a Marcha das Mulheres de 2023 diz muito sobre a amplitude das demandas acumuladas durante os últimos seis anos.
“Mulheres nas ruas contra: o racismo, o feminicídio, o transfeminicídio, o encarceramento em massa, pela legalização do aborto, por uma democracia popular e sem anistia para golpistas” é um tema amplo, que denota a variedade de temas que ficaram para trás no debate nacional sobre direitos femininos.
“Nacionalmente, as pessoas estão apostando na reconstrução das políticas sociais no Brasil. Inclusive na reconstrução do Ministério da Mulher – que gerou muita expectativa e esperança em relação ao que vai acontecer em relação às políticas públicas nacionais voltadas para as mulheres”, afirmou Jô Meneses.
Para ter uma ideia do quão vulneráveis estão as mulheres no Brasil, um estudo no Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), divulgado no início de março, aponta para uma estimativa de dois estupros por minuto no país – ou 822 mil casos por ano, sendo as vítimas principais mulheres e meninas, a maioria na faixa etária até 13 anos.
Desses casos, segundo o Ipea, apenas 8,5% são registrados pela polícia, enquanto 4,2% são identificados pelo sistema de saúde.
Em Pernambuco, em 2022, 120 mulheres foram agredidas por dia e houve 43.553 denúncias de violência contra a mulher – um crescimento de 5,7% em relação ao ano anterior. O estado registrou 72 feminicídios – número inferior ao de 2021, quando houve 87 crimes dessa natureza, mas, ainda assim, um total elevado.
Na avaliação de Jô Meneses, quando se fala de violência, é preciso ter conhecimento sobre os dados de forma clara, para que as iniciativas de proteção sejam efetivas e baseadas em dados.
A senadora Teresa Leitão (PT) – primeira mulher eleita para o Senado por Pernambuco – declarou que é preciso ultrapassar um momento recente em que a condição da mulher foi ideologicamente reduzida a uma coisa.
“Tivemos um retrocesso muito grande, um discurso em que as condições efetivas de igualdade não fizeram parte da dinâmica social. Um período marcado por uma discussão sempre muito tensa, sobretudo em relação a questões de saúde sexual e reprodutiva das mulheres, direitos e igualdade no trabalho e a questão da autonomia sobre nossos corpos. Então, acredito que a gente não tem muita escolha. A prioridade é tudo”, disse a senadora.
Leitão ponderou que, ao mesmo tempo em que a bancada feminina aumentou 18,2% nas eleições de 2022 – inclusive com a eleição de duas mulheres trans (Erika Hilton/PSOL-SP e Duda Salabert/PDT-MG) –, o número de parlamentares dos segmentos conservadores também cresceu no Congresso Nacional.
“Acredito que haverá um debate ideológico para pontuar o papel da mulher na sociedade. É importante destacar a relevância da educação em todas essas pautas, que, na minha visão, estão interrelacionadas. Uma educação intersexista é fundamental, e acredito que enfrentar o feminicídio é uma pauta focal, com a qual o governo federal e os governos estaduais devem se posicionar abertamente”, afirmou a senadora.
De mãos dadas
A educadora e ativista Domênica Rodrigues, que também é assessora de Mulheres da Federação dos Trabalhadores Rurais de Pernambuco (Fetape), contou que as mulheres passaram os últimos anos "segurando umas às outras".
“Principalmente durante a pandemia da Covid-19, quando as mulheres foram mais exigidas. Precisavam ficar em casa, o que seria o lugar mais seguro, mas, ao mesmo tempo, era onde o agressor estava. O crescimento da violência doméstica, a sobrecarga de trabalho, o estresse – tudo veio num acumulado”, afirmou Domênica.
Ela declarou que os eventos dos últimos anos culminam para que as mulheres cheguem exaustas ao 8 de março de 2023.
“As mulheres fizeram o ‘seu’ papel: trabalhadora, mãe, médica, cuidadora, apaziguadora, esposa, namorada, sobrecarregada. Vejo que a gente chega hoje com um esperançar e, ao mesmo tempo, exaustas”, disse Domênica.
Para ela, o contexto de intolerância ao diferente agravou situação das mulheres de diversos segmentos – do campo e da cidade.
“Vivemos um contexto forte de intolerância, com incentivo à posse de armas, numa realidade de mulheres violentadas – mulheres trans, negras, crianças, idosas, judias, mulçumanas. Um contexto político e de país. Vejo as mulheres com a responsabilidade de fazer o país redirecionar o caminho para o ‘bem-viver’”, disse a educadora.
Mulheres contra a violência
De forma complementar aos temas definidos para a Marcha das Mulheres neste 8 de março, o Fórum de Mulheres de Pernambuco estabeleceu um tema geral para as manifestações em todas as regiões do estado: “Pela vida das mulheres – democracia e bem viver”.
“A minha opinião pessoal é que a violência é uma das piores heranças do governo Bolsonaro. A gente ouviu muitas falas naturalizando a violência contra as mulheres em diversos setores da sociedade. Não apenas do Poder Executivo, mas também do Poder Judiciário. Vimos juiz e advogado debocharem de vítimas de estupro. E também um incentivo à posse de armas; [um argumento de] que se as pessoas estivessem armadas, poderiam elas mesmas pôr fim à violência”, disse Jô Meneses.
De acordo com ela, as políticas públicas de proteção às mulheres foram esvaziadas e ficaram sem orçamento para serem executadas.
Nesse sentido, Jô Meneses avaliou que o desafio do novo governo é grande e crescem em importância projetos do governo federal que agora estão sendo retomados, como a Conferência da Mulher, o Pacto contra a Violência, a Casa da Mulher Brasileira e a garantia de direitos constitucionais como o aborto em caso de estupro e de feto anencéfalo.
“A questão [da garantia] do aborto legal é algo fundamental. As mulheres vêm sendo revitimizadas por não terem acesso ao direito. É o caso da menina que foi estuprada no Piauí, por exemplo, que foi afastada da família e levada a um convento de freiras, para não ter acesso ao seu direito. É muita misoginia”, declarou Jô.
A ministra de Ciência, Tecnologia e Inovação do Brasil, Luciana Santos, também apontou esse momento de retomada como destaque. Para ela, após o desmonte das políticas afirmativas promovido pelo governo Bolsonaro, o momento é de reconstrução e de assegurar direitos e oportunidades para todas as mulheres.
Na condição de primeira mulher a assumir o ministério, Luciana Santos ressaltou que o cargo traz uma responsabilidade no sentido de avançar nas políticas de inserção das mulheres na área da ciência.
"A vontade política do Estado é decisiva para superar a desigualdade de gênero. [...] A participação das mulheres é fundamental para garantir a excelência da produção científica. Por isso, tenho compromisso com a retomada dessa agenda, fortalecendo os instrumentos que dispomos e avançando na construção de mecanismos capazes de democratizar e garantir a inclusão das mulheres nos ambientes de pesquisa e desenvolvimento", disse.
Racismo e desigualdade
Integrante da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, Rosa Marques declarou que o grande desafio também é colocar a pauta das mulheres negras, trans e lésbicas negras em destaque. O extenso tema do 8 de março deste ano, para ela, representa o que foi a vida das mulheres nos últimos anos, em Pernambuco e no Brasil.
“A pandemia para nós foi extremamente danosa porque acentuou as desigualdades sociais e raciais que as mulheres estavam enfrentando. Para além da pandemia, o governo de Bolsonaro foi muito danoso. O tempo todo negava as nossas pautas. A pauta das mulheres negras, do movimento LGBTQIA+, dos povos tradicionais. Foram anos difíceis em que o empobrecimento das mulheres negras aumentou”, contou.
Dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) divulgados em novembro de 2022, com base em informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontaram que o desemprego das mulheres negras era o dobro da desocupação dos homens negros, de 13,9% e 6,1%, respectivamente.
A discrepância de remuneração apontava para uma renda média de R$ 3.708 para homens não negros; R$ 2.774 para as trabalhadoras brancas, R$ 2.142 para trabalhadores negros, enquanto as trabalhadoras negras ganharam, em média, R$ 1.715, o que corresponde a 46,3% do rendimento médio dos trabalhadores brancos.
“O adoecimento psíquico durante esses anos foi muito forte. Quando a gente conseguiu se mobilizar foi em meados de 2020. As dores da pandemia e a fome estavam muito presentes e a nossa mobilização foi em busca de alimentos, na tentativa de reverberar que não estávamos sozinhas”, explicou Rosa Marques.
Ela também disse que, além do combate à fome, a prioridade do movimento é a luta contra o racismo e contra qualquer tipo de violência contra as mulheres – incluindo o combate ao feminicídio e ao transfeminicídio.
“Não foi só a morte de Marielle [Franco]. A violência contra as mulheres no campo político aumentou consideravelmente, e as mulheres negras ficaram muito mais vulneráveis com ações de incitação ao ódio, fake news, somados a uma sociedade em que prevalece o patriarcado e o machismo. A sociedade diz quem deve ou não viver, quem deve ou não aparecer”, afirmou Rosa.
Questões latentes do atual momento econômico, político e social do Brasil também foram destacadas por Rosa.
“A fome não espera políticas públicas. Se não fossem os movimentos sociais de mulheres, de mulheres negras e feministas, muitas delas estariam em óbito com muita facilidade. São muitas nuances que impactam na vida das mulheres negras, provocando dores diárias e o adoecimento. Quando se trata de uma mulher negra, a visibilidade não é no mesmo nível. O que a gente coloca [nesse 8 de março] é que a vida das mulheres negras importa, sim”, declarou.
Políticas afirmativas e contexto estadual
Do ponto de vista de uma política estadual a favor dos direitos das mulheres, os movimentos sociais entrevistados dizem ainda não ser claro o caminho adotado pela gestão da primeira governadora de Pernambuco, Raquel Lyra (PSDB).
“A partir do fechamento da Escola de Redução de Danos, em Olinda, no carnaval, vimos que o encaminhamento não foi o esperado. Outra questão foram os dados sobre violência durante o carnaval, que não foram divulgados; a previsão é 15 de março. Sempre foi muito mais ágil esse processo. Ainda não sabemos o encaminhamento do governo estadual nesse sentido”, disse a antropóloga Jô Meneses.
Domênica Rodrigues, da Fetape, acrescentou que os movimentos de mulheres ainda não foram chamados para conversar com o novo governo estadual. Para ela, a maior preocupação é que o diálogo não seja estabelecido, especialmente diante de uma Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) com espectro majoritariamente conservador e base de apoio da governadora.
“Sabemos que nossa pauta não é uma pauta querida [por esse segmento]. Esperamos que ela [a governadora] segure essa pauta junto com a gente. Por isso, queremos entregar a ela um manifesto neste 8 de março”, afirmou Domênica.
Ela também destacou que, permeando todas as violências, está o empobrecimento da população. “A pobreza termina gerando todas as outras violências. Existe uma estrutura que faz com que a gente permaneça nesse lugar. A gente fica olhando e diz: 'Poxa vida! A gente tem lutado tanto e terminado onde?”, questionou, emocionada.
Em entrevista ao g1 para esta reportagem, a governadora Raquel Lyra se comprometeu a ter atenção especial com alguns temas.
“Se a gente olhar pelas questões sociais e econômicas, foram as mulheres que primeiro perderam o emprego [na pandemia] e que não conseguem se restabelecer no mercado de trabalho. São elas que sofrem com mais miséria, que estão com as crianças, que lidam com as pessoas com deficiência e muitas vezes estão sozinhas. Existe uma agenda enorme a ser tratada e, se a gente melhora a vida das mulheres, melhora a vida das famílias e garante mais qualidade de vida no nosso estado”, afirmou.
Entre os temas citados pela governadora, despontam o aumento de vagas em creches no estado, o combate ao feminicídio e as políticas para garantir maior autonomia financeira para as mulheres. Raquel Lyra também mencionou a falta de maternidades no interior do estado, o que leva gestantes a viajar até 400 quilômetros para conseguir atendimento.
Ela também citou a composição do secretariado – com 52% de lideranças femininas – e a iniciativa de colocar as delegacias da Mulher em funcionamento 24 horas por dia, todos os dias da semana – anunciada no sábado (4).
Sobre uma possível imposição de uma pauta conservadora representada por aliados na Alepe, Raquel Lyra disse que foi eleita “pela força política do desejo de mudança do povo de Pernambuco” e que não se sujeita a rótulos.
“Mudar não é fácil. Ficam tentando atribuir a mim ou rotular de que sou a favor disso ou contra aquilo. Farei tudo que for preciso para garantir a atenção de política pública a todos os pernambucanos e pernambucanas. Não me rotulem porque vocês vão se surpreender. Todas as pautas de direitos humanos serão tratadas com diálogo, com construção de política pública verdadeira, com proteção, acolhimento. A agenda de cuidar de todos é a agenda do nosso governo”, afirmou a governadora.
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