A forma como as igrejas evangélicas atravessam a vida das mulheres é o que move o trabalho de Jacqueline Moraes Teixeira. Professora do Departamento de Sociologia da UnB e pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), ela acompanha de perto uma mudança de comportamento nesse grupo, principalmente entre as pentecostais, quando o assunto é política — hoje, elas são cortejadas pelos dois primeiros colocados na disputa presidencial, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o candidato à reeleição, Jair Bolsonaro (PL).
Para o presidente, o segmento é seu calcanhar de Aquiles. Apesar de receber 50% das intenções de voto dos evangélicos na mais recente pesquisa Datafolha, ele não tem conseguido crescer entre o eleitorado feminino — 39% das mulheres evangélicas ainda não votam em Bolsonaro
Teixeira explica que há, entre elas, a percepção clara de que Bolsonaro não fez um bom governo durante a pandemia. Uma pesquisa desenvolvida pelo Iser (Instituto de Estudos da Religião), sob coordenação da antropóloga com outras pesquisadoras, mostra que há um incômodo muito forte em como o presidente lidou com as mortes por covid-19.
Num dos recortes, as especialistas ouviram 45 mulheres evangélicas das cinco regiões do país, das classes C, D e E. Muitas lembraram os episódios em que Bolsonaro imitava uma pessoa sem ar, ou quando, ao ser cobrado por ações, durante a escalada de mortes, o presidente afirmou que não era coveiro. "Há uma ambivalência muito grande no entendimento do perfil cristão do Bolsonaro. Existe a sensação de que houve uma falha ética muito importante", explica Teixeira. Apesar disso, boa parte das que votaram nele em 2018 querem repetir o voto no ex-capitão. O motivo é a performance de Bolsonaro como um cara "de verdade".
"Aparece muito essa ideia de que ele é uma pessoa tosca, que não sabe falar direito, só que isso, para esse público, não é uma coisa 100% negativa. Traz uma sensação de sinceridade — de que é melhor, muitas vezes, você confiar numa pessoa que é tosca e que não sabe fazer as coisas direito, e fala isso, do que você confiar e votar em alguém que mostra uma coisa que não é.''.
Voto fraturado
A antropóloga observa, contudo, que há fraturas evidentes nesse voto de confiança — foi assim também em 2018, quando ela acompanhou grupos de WhatsApp de mulheres da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) que trabalhavam como obreiras e voluntárias em unidades carcerárias, crianças e no combate à violência doméstica.
Naquela época, o bispo Edir Macedo, fundador da Universal, não tinha o hábito de declarar apoio político tão cedo. "Era uma decisão que acontecia sempre muito próximo ao pleito. A IURD é uma tecnologia de centro político: ela sempre tenta pensar na parceria com quem está ocupando o poder no momento. Foi assim que ela construiu uma aliança com o PT entre 2005 e 2016, ano do impeachment da Dilma Rousseff", explica.
A aliança teve fim oficialmente três semanas antes do 1º turno, quando Edir Macedo resolveu apoiar publicamente Jair Bolsonaro. Nos grupos de WhatsApp, a antropóloga detectou, naquela época, um esforço feminino para evitar que o apoio provocasse um efeito cascata. "Elas passaram a discutir se votariam com o bispo ou não", diz. "No primeiro turno, muitas tinham votado não apenas em Fernando Haddad [que substituiu Lula na disputa após a prisão do ex-presidente], como também no Cabo Daciolo e na própria Marina [Silva]. Quando o segundo turno vem e fica Haddad e Bolsonaro, essa discussão se intensifica e elas passam a debater o que seria melhor fazer como cristãs.".
Muita coisa mudou desde então e novos desgastes surgiram nesse engajamento. Teixeira cita a participação de Bolsonaro no debate presidencial do UOL, em parceria com Band, Folha de S.Paulo e TV Cultura, mais especificamente nos embates que o presidente travou com a jornalista Vera Magalhães, e com a própria candidata Simone Tebet (MDB). "Várias dessas mulheres nesses grupos que eu acompanho decidiram votar na Simone depois disso", diz.
Tanto em 2018 quanto na disputa deste ano, o que ainda segura o voto dos evangélicos em Bolsonaro é o mito que o PT poderia perseguir as igrejas evangélicas — muito embora os governos petistas tenham facilitado bastante a burocracia, com mudanças no Código Civil para uma nova política de impostos e reconhecimento com CNPJ, ações que facilitaram a abertura de novas igrejas. "Mas não votar no Bolsonaro naquele momento, para estas pessoas, era uma traição à igreja.".
De qualquer forma, a antropóloga observa que as pesquisas não corroboram o chamado "curral eleitoral", onde supostamente o pastor ou alguma liderança religiosa direcionaria o voto. "Não é que isso não aconteça, mas de alguma maneira essa decisão precisa ser fruto de uma elaboração e de uma discussão.".
Jacqueline Teixeira foi entrevistada para o documentário sobre evangélicos no Brasil, com dois episódios, lançado nesta segunda-feira (26) por MOV.doc e TAB.
Rota de colisão
A pesquisa de Jacqueline Teixeira é pautada em sua própria experiência religiosa. Ela cresceu num lar evangélico tradicional, guiada pelos preceitos e valores da Igreja Batista, algo transformador na vida de seus pais. "Com sete anos, eu era uma pessoa que pregava na igreja", diz. "Havia expectativa de que eu seria uma grande missionária." Mas a fé entrou em rota de colisão quando ela passou a se interessar por temas do mundo secular.
A antropóloga nasceu e cresceu na periferia de Piracicaba, no interior de São Paulo. A mãe, doméstica, converteu-se primeiro. O pai seguiu o mesmo caminho. Neste berço, a igreja tinha uma força inescapável em garantir o bem-estar da família — o que explica o fato de os evangélicos hoje chegarem a 32% da população brasileira, com projeção de se tornarem o maior grupo religioso do país em 2032.
"Foi a partir da conversão que minha mãe foi alfabetizada e conseguiu acessar alguns códigos que talvez fossem meio proibidos para pessoas com trajetórias semelhantes às dela", avalia.
Com o pai, cuja família lidava com a relação dos homens com o alcoolismo, a mudança também foi profunda, a mudança também foi profunda. "A igreja foi importante para moldar uma masculinidade civil aceita. É como se ele tivesse de 'performar' outra masculinidade, agora voltada ao trabalho, à família e longe do álcool.".
Sua visão de mundo na época era baseada na crença no Apocalipse, um entendimento literal sobre o fim do mundo, último livro da Bíblia. Na escola, porém, ela se envolveu com movimentos sociais e estudantis, batendo de frente com uma crença antiga entre cristãos de várias bandeiras, católicos e evangélicos: a de que o comunismo é coisa do diabo. "Esse processo me gerou muito sofrimento. Eu não sabia elaborar minha visão de mundo fora da igreja. Tinha uma responsabilidade ética de manter esse caminho", diz.
A porta de entrada para a vida acadêmica aconteceu na Faculdade Teológica Batista, localizada no bairro de Perdizes, em São Paulo. O prédio sóbrio ficava em frente à PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), em cuja biblioteca Jacqueline perdia horas. Era 2002. "Percebi ali que não tinha mais condições de continuar com o mesmo vínculo religioso", diz. "Decidi abandonar a possibilidade de uma vida no contexto eclesiástico — já que, no máximo, eu seria era uma frequentadora anônima.".
No mestrado e no doutorado, a antropóloga quis pesquisar gênero e direitos reprodutivos dentro da IURD — o que permitiu vislumbrar mais a fundo a visão e o voto das mulheres evangélicas, apontada como categoria-chave para o resultado das urnas em 2 de outubro.
A virtude é da mulher Na disputa eleitoral de 2022, uma mulher foi escolhida para ampliar a aceitação de Bolsonaro: sua esposa, a primeira-dama Michelle Bolsonaro. "Ele não é evangélico e as pessoas sabem disso. Mas, na maioria das igrejas, os homens também não são evangélicos: quem garante a 'virtude' do homem é a mulher. Ser casado com uma evangélica é muito mais importante do que ser evangélico, e é isso que, de alguma maneira, a Michelle 'performa'", explica Jacqueline.
A primeira-dama continua sendo peça fundamental para segurar as mulheres que decidiram votar em Bolsonaro, observa Teixeira. "Essas fissuras foram surgindo, principalmente em relação à situação da pandemia e uma sensação de que determinadas expectativas não aconteceram na saúde e educação. Nessa fissura, a Michelle é fundamental para garantir um pouco a estabilidade desse voto. Estão votando, na verdade, no casal.".
Para entender melhor o que representa a figura feminina entre os evangélicos é necessário falar sobre a figura da pastora e advogada Damares Alves, ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos no governo Bolsonaro.
"A trajetória dela é comum entre as mulheres evangélicas nesse processo de ascensão social: passa pelo teologia, até chegar a um curso secular [direito], que pensa em pautar coisas ao mundo via igreja. Muitas mulheres estão procurando a carreira no direito por causa disso. E Damares faz isso em duas pautas fundamentais: abuso de menores e violência doméstica.".
Jacqueline se lembra de assistir a um curso na Igreja Batista da Lagoinha, produzido por Damares, muito antes de ela ganhar notoriedade como ministra em Brasília. Ali, ela treinava mulheres evangélicas para atender mulheres em situação de vulnerabilidade e violência. Hoje, Damares Alves é candidata ao Senado pelo Distrito Federal pelo partido da igreja Universal, o Republicanos.
Para Teixeira, há um descompasso entre a bancada evangélica, majoritariamente masculina, e as mulheres de fé evangélica. Nem sempre a frente sabe o que querem essas eleitoras.
Ao invés de pautas como o armamento, elas se interessam mais em autonomia financeira. "Isso é muito importante porque acaba permitindo que essa mulher se divorcie, em caso de violência doméstica", observa Teixeira. No geral, todas prestam mais atenção em questões como saúde pública, infância, educação e violência doméstica.
"Todas essas pautas traduzem uma ideia de família. A centralidade da pauta da família não está relacionada à ideia de pai/mãe/filhos, mas à de subsistência. Pensar na família é pensar em políticas de subsistência.".
Vídeo 'O ser evangélico'
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