Após prisões no MA e no PI por desvio de dinheiro liberado pelo governo Bolsonaro, mecanismo nebuloso usado para comprar votos e apoio de deputados é chamado de “maior esquema de corrupção do planeta”. Entenda
O Brasil acordou nesta sexta-feira (14) com a notícia de que 60 policiais federais realizavam uma grande operação em cinco municípios do Maranhão e dois do Piauí. O motivo da investida por parte dos agentes era a utilização de documentos e papéis claramente fraudulentos que “justificavam” o aporte para prefeituras locais de valores milionários originados do famigerado orçamento secreto, obtidos pelas pornográficas emendas do relator.
Para simplificar e usar como exemplo apenas um dos alvos da operação da PF, tomemos o caso da cidade de Igarapé Grande, distante 300 km da capital São Luís (MA). Por lá, os administradores informaram ao sistema do SUS que realizaram 12,7 mil radiografias de dedo em um ano, numa localidade que tem 11,5 mil habitantes, algo absolutamente ridículo e impossível de ocorrer.
Só que essas informações foram colocadas nos computadores do governo de Jair Bolsonaro (PL) para que o teto de recebimento de recursos por meio de emendas do relator, do orçamento secreto, fosse aumentado e mais dinheiro chegasse aos cofres públicos.
Qual deputado pediu esses recursos e como foram enviados ao destino? Isso ninguém sabe e é a partir daí, dessa destinação indiscriminada e anônima para milhares de pequenas e médias cidades do país que parlamentares, em conluio com empresários locais, afanam o dinheiro da população e o fazem chegar (seja por meio de compras ou execução de serviços, sempre superfaturados, ou até mesmo inexistentes) aos seus próprios bolsos.
Especialistas em gestão pública, economia e política, desde 2019, quando o orçamento secreto foi implantado, vêm chamando a atenção da opinião pública para o que muitos consideram “o maior esquema de corrupção do planeta”, já que não há qualquer mecanismo de controle ou de fiscalização para a festança do envio de bilhões de reais para vários cantos do Brasil, tudo com a anuência e os auspícios do governo Bolsonaro, que permite o mecanismo e o estimula para manter o apoio e os votos desses deputados e senadores.
Desde 2020, quando o orçamente secreto foi efetivamente colocado em prática, os 257 deputados federais do PL, Republicanos, PTB, União Brasil, PSC, PP e Patriota, que formam o Centrão e dão sustentação a Jair Bolsonaro, receberam R$ 6,2 bilhões, com destaque para o PL, legenda do presidente da República, que ficou com R$ 1,6 bilhão.
Entenda exatamente como funciona o orçamento público, as emendas parlamentares “normais”, o orçamento secreto e as emendas do relator
Parlamentares atendem a suas bases eleitorais por meio de emendas, que são fatias do orçamento destinadas a algum tipo de obra, projeto ou ação, nas áreas de educação e saúde sobretudo, nos estados e municípios. Para conseguir a liberação desse dinheiro há uma série de burocracias e a obrigatoriedade de se comprovar a real necessidade desses recursos, que são liberados pelo Legislativo.
Essas chamadas emendas podem ser reivindicadas por um só deputado, por uma bancada de um determinado partido ou segmento, ou ainda por comissões de deputados. O processo para liberação do recurso é rígido e para os órgãos de transparência é possível monitorar quem é o parlamentar, ou a bancada, que pleiteou os valores, além de saber qual é o destino do dinheiro.
No entanto, uma nova "espécie" de emenda parlamentar foi criada a partir de 2019, chamada de "emenda do relator", ou “RP9”. Tal procedimento é considerado uma aberração em termos de transparência, já que só é possível identificar quem receberá o dinheiro e qual será a aplicação dele, sem revelar quem foi o deputado que o "conquistou". A emenda vem no nome do relator do orçamento, uma figura genérica que muda de ano para ano na Câmara dos Deputados.
Como o nome do parlamentar que foi "agraciado" com milhões de reais não é revelado, os cientistas políticos e integrantes de órgãos de transparência classificam o controverso instrumento como um verdadeiro esquema de compra de integrantes do Legislativo (parlamentares) por parte do poder Executivo (governo), que passa a distribuir bilhões de reais para deputados que não têm rosto, nem nome, e que em troca votam favoravelmente aos interesses do Palácio do Planalto.
O dinheiro utilizado no pagamento dessas obscuras emendas de relator sai de um montante denominado "orçamento secreto", que na prática acaba servindo como um fundo (ou um caixa) de onde saem bilhões de reais que "mimam" aqueles deputados que, por acaso, possam dar seus votos aos interesses do presidente da República e de seu governo.
O que dizem os órgãos judiciais e de transparência
O Tribunal de Contas da União (TCU) já analisou a questão do orçamento secreto e das emendas do relator, em 2020, e orientou o governo federal a dar ampla publicidade à documentação que versa sobre a distribuição desses recursos nebulosos e isso não serviria apenas aos casos daquele ano, mas sim para todos os anos seguintes.
Há 11 processos correndo no TCU sobre o assunto e o mais avançado deles é um que trata de obras realizadas na Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba (Codevasf) realizadas com dinheiro oriundo de emendas do relator. O responsável por essa ação é o ministro Antonio Cedraz.
O Supremo Tribunal Federal (STF), em novembro de 2021, decidiu por 8 votos a 2 manter a decisão da ministra da corte Rosa Weber, em caráter monocrático, que suspendeu o pagamento das emendas de relator autorizadas pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). Os autores da ação que pediu a paralisação dos pagamentos, que vêm sendo usados para “comprar” votos de parlamentares em favor dos interesses do governo Bolsonaro, foram as bancadas do PSOL, do Cidadania e do PSB.
“Enquanto as emendas individuais e de bancada vinculam o autor da emenda ao beneficiário das despesas, tornando claras e verificáveis a origem e a destinação do dinheiro gasto, as emendas do relator operam com base na lógica da ocultação dos efetivos requerentes da despesa, por meio da utilização de rubrica orçamentária única”, disse a relatora Rosa Weber em seu parecer encaminhado ao plenário do STF.
O presidente da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo (ANTC), Ismar Viana, classificou o uso do orçamento secreto como um dispositivo que pode criar uma disparidade e um desequilíbrio nos processos eleitorais visto que libera gigantescos recursos para serem usados com finalidades escusas.
“Essa sistemática política é incompatível com a lógica que deve pautar a alocação de recursos no orçamento. É inequívoco que a ausência de transparência, de equidade e de critérios na definição dessas emendas são práticas com as quais o constituinte rompeu, que podem desequilibrar processos eleitorais, pelo imenso volume de recursos à mercê de interesses de pessoas ou grupos, sem regras, fora das vistas da sociedade e do controle”, falou Viana.
Um grupo formado por 35 entidades dos setores público e privado da área de transparência assinou uma nota conjunta condenando a utilização das emendas do relator e o orçamento secreto, sob o argumento de que o esquema é utilizado para atender a interesses, por meio de uma manobra, do governo Bolsonaro.
“Embora as emendas de relator sejam instrumento com previsão e regulação legal e regimental, resta evidente que têm sido desvirtuadas para atender interesses incertos por meio da transgressão aos postulados da transparência, da publicidade, da moralidade, da impessoalidade e da eficiência na gestão dos recursos públicos”, diz um trecho da nota.
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