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Suellen é uma privilegiada. Tem o registro do pai biológico e afetivo (Foto: Arisson Marinho)Suellen é uma privilegiada. Tem o registro do pai biológico e afetivo (Foto: Arisson Marinho)

Quando a figura paterna tenta escapar de suas responsabilidades, é hora de procurar a Justiça

Do dia primeiro de janeiro de 2022 até o último dia 11 de agosto, a Bahia registrou 107.320 novos baianos. Destes, 7.722 tiveram seu registro civil sem o nome do pai, segundo a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil). É como se 7% dos registros saíssem dos cartórios sem a figura paterna presente na vida da criança. Pode parecer pouco, mas este número é maior que a população de 36 municípios baianos. A Arpen cataloga registros civis desde 2016 e já revelou um número total de 962.467 brasileiros que provavelmente não têm muito o que comemorar no dia dos pais.


Tereza Batista* é mais uma no meio de tantos cidadãos que não possuem o nome do pai na certidão de nascimento. Como tem 41 anos, sequer faz parte da estatística da Arpen. Após relação com colega de trabalho, a mãe engravidou e decidiu tê-la, mesmo com a negação do homem, que não queria a gravidez, pois era casado e tinha outros três filhos. Mais uma mãe solo que decidiu assumir tudo. Aos nove anos, contudo, Tereza perdeu a genitora.  Sem os pais, a menina passou a morar na casa de tias até que, já na fase adulta, finalmente soube quem era o seu pai.

“Minhas tias tinham o nome e algumas referências do meu pai. Um belo dia, conversando com uma amiga, ela me perguntou se eu não tinha interesse em procurar meu pai. Comecei a descrever o que sabia, ela foi arregalando os olhos, até que me interrompeu: ‘ele é meu tio’. Isso ocorreu em 2004 e desde então eu tento um exame de DNA”.  Tereza acredita que sua vida poderia ser diferente se conhecesse ou tivesse o registro do pai, que ainda se recusa a fazer o teste de paternidade. “Terei que ir para a justiça, infelizmente”, disse.

As consequências não são apenas financeiras ou afetivas. “Eu fiquei tanto tempo protelando este DNA, até que minha psicóloga me disse que eu precisava fechar este ciclo. Que esta ausência tinha uma nocividade na minha vida que eu não percebia, que me fazia estabelecer um perfil masculino baseado nesta figura paterna que eu não tive. Isto atrapalhava até nas minhas relações [amorosas]. Não ter a figura do pai é uma consequência sem fim”, disse Tereza, que tem dois filhos.

As pesquisas sobre o tema são brandas e boa parte desatualizadas, apesar de ser pácifico entre os psicólogos sobre a fragilidade emocional de filhos e filhas que não tiveram um pai afetivo e presente. O maior estudo sobre o tema aconteceu em 2014, onde os pesquisadores Sara McLanahan , Laura Tach e Daniel Schneider, de diversas universidades dos Estados Unidos e Europa, fizeram uma revisão de 47 artigos sobre ‘Os efeitos causais da ausência paterna’.

“Vemos a evidência mais forte de um efeito causal na saúde mental do adulto, sugerindo que os danos psicológicos da ausência do pai durante a infância persistem ao longo da vida”, concluíram os pesquisadores, que fizeram análises de estudos nos Estados Unidos, Reino Unido, Canadá e Austrália. Eles também concluíram que crianças sem o pai possuem uma maior tendência de distúrbios socioemocionais, além dos adolescentes terem uma tendência maior para comportamentos de risco. O estudo está disponível no site do National Library  of Medicine.

Em 2018, o Ministério Público de São Paulo fez esta pesquisa e constatou que  83% dos adolescentes que se envolveram em algum ato infracional e foram internados em casas socioeducativas não tinham a figura do pai biológico em casa. Solicitamos este recorte ao Tribunal de Justiça da Bahia, mas não obtivemos retorno até o fechamento desta edição.

Justiça

Como diminuir estas consequências da falta do pai? Não dá para cobrar amor, mas é possível exigir responsabilidades. Para isso, a mãe não precisa segurar tudo sozinha: o caminho é justamente a lei. A medida é importante não apenas para aliviar o peso da criação, mas também a segurança e direitos da criança, que pode crescer com a estrutura a que ela tem direito.

“Atitudes como a de fugir da responsabilidade paterna de cuidar dos filhos sempre fez parte da história da sociedade. O que acontece de diferente nos dias de hoje é que existem leis que regulamentam essa questão. Precisamos que a sociedade seja ainda mais ativa nessa questão. Precisamos  também que as mães sejam conscientizadas dos seus direitos e estejam amparadas juridicamente para avançarmos na construção de ações que inibem essa fuga da responsabilidade pelo cuidado”, disse a psicopedagoga Fabiana Maynart,  psicopedagoga e coordenadora de Educação Sócio Emocional do Grupo Perfil.

Maynart reforça que esta busca de direitos é uma forma de diminuir os impactos nocivos que a ausência dos pais causam na criança e de todo processo de crescimento. “A ausência paterna causa problemas comportamentais, tanto na pré-escola quanto ao longo da vida escolar, como agressividade, depressão e fragilidade nas relações afetivas. Em caso extremo, a ausência da paternidade se torna um fator de risco também relacionado à criminalidade”, avisa.

Buscar a justiça também beneficia a saúde mental da mulher, tirando a sobrecarga e melhorando sua vida social. O advogado cível e especialista na área de Família, Eliseu Bélens, observou em suas clientes uma necessidade não apenas de se fazer justiça, mas de ter uma vida social mais saudável.  

“Ao buscar os direitos, principalmente a convivência entre o pai e o filho, a mulher ganhará tempo para cuidar de si mesma. Sabemos que, diante dos desafios da maternidade solo, muitas mulheres acabam se privando do autocuidado e deixando de fazer várias atividades, incluindo o lazer. É necessário que as mães tenham momentos para si, pois isso reflete na saúde física, psicológica, emocional e no exercício da maternidade”, disse Eliseu.

Atualmente, a busca pelos direitos da mãe e do filho está mais simples do que se imagina, incluindo os exames de comprovação de paternidade. Não precisa ir em nenhum Programa do Ratinho. Basta se dirigir à Defensoria Pública do Estado da Bahia mais próxima e fazer o teste, sem burocracias ou espetáculos. A DPE/BA já faz testes de DNA desde 2007 e já efetuou 20.707 exames no estado, de graça. Só este ano, foram 779, incluindo o rodoviário Carlos Alberto Costa. Na verdade, ele colaborou com dois exames de DNA.

O filho de Carlos morreu há quase um ano e não chegou a reconhecer os dois filhos que teve com Raíssa Santana, de 18 anos. O avô decidiu fazer. Na última quarta-feira, saiu o resultado de um dos filhos, o pequeno Cristian Valentin, de um ano e cinco meses. A paternidade foi confirmada. O resultado da menina Júlia, de dois anos, será revelado apenas na semana que vem.

“Nem precisava. Meu filho se envolveu com coisa errada e nos deixou muito cedo. Mas me deu o prazer agora de ser pai e avô. Tem três dias que não durmo querendo ver logo este resultado, pedindo a Deus que fosse positivo, pois estas crianças precisam da figura do pai. Agora terão a figura do pai/avô, pois vou criar os dois. Já estava ajudando, mesmo sem exame. Eles são minhas alegrias. Estou muito emocionado”, disse Carlos, enquanto tentava segurar o choro.  
Defensoria faz campanha para reconhecimento e afetividade paterna

Na Defensoria Pública também é possível buscar auxílio jurídico para pedidos de pensão alimentícia.  Segundo o órgão, até julho deste ano foram 10.654 atendimentos de mulheres buscando pensão. Durante todo ano de 2021, foram 11.763. Procuramos o TJ-BA sobre o número de pais condenados pela falta de pagamento, mas não obtivemos retorno.

“A gente ainda tem uma grande luta, que é a pensão. Aqui na Defensoria pegamos mães pobres que lutam para que o pai faça sua obrigação de cuidar da alimentação, educação, vestuário, divisão de responsabilidades e do afeto [do filho]. Imagine a criança no meio disso tudo. É muito triste. Não são todas, pois temos a força das mães, mas algumas crianças acabam desajustadas no meio deste caminho turbulento. A ausência do pai sempre vai refletir no crescimento da criança. Precisamos internalizar que a família é a base da sociedade. Não a família tradicional brasileira. A família  da diversidade também”, disse a defensora pública Paula Nunes, coordenadora da Especializada em Família e Sucessões.

Lembra do início da matéria, que falávamos do número de registros de crianças sem o nome do pai? Entre 2016 e agosto de 2022, mais de 65 mil crianças foram registradas apenas com a figura materna na Bahia. Porém, este número tem o contrapeso. A justiça, por meio de diversas provas, como o DNA, também obriga judicialmente que o genitor registre a criança, mesmo com idade elevada. Tereza, do início da matéria, terá a ajuda da Defensoria no seu caso.

Para ser pai no registro, nem precisa ser obrigado pela justiça. Melhor: nem precisa ser o pai biológico. Inclusive, é possível ter dois pais no mesmo registro, como é o caso de Suellen Ferreira, que tem o nome do pai biológico e do afetivo na mesma certidão.

“É a realidade da maioria das pessoas ter uma mãe solo. A própria mãe tenta suprir a figura do pai. Mesmo assim, fica uma lacuna, né? Eu demorei para entender que meu pai biológico, apesar de vivo e com registro, era ausente. Contudo, meu pai afetivo foi diferente de tudo que se vê na sociedade. Ele preencheu uma lacuna que nem eu achava que tinha. Quem não tem o pai na certidão sofre brincadeiras na escola, é difícil demais. Eu me sinto privilegiada em ter os dois no registro”, disse Suellen.

Advogada, Suellen tem uma relação respeitosa com seu pai biológico, Luis Cláudio Bispo. Contudo, o amor entre filha e pai é com seu pai afetivo, Marcelo Souza, que a cria desde os dois anos de idade. “Suellen já está presente na minha vida há 26 anos. É um relacionamento afetivo, de pai para filho. Não a vi nascer, mas participei do crescimento, buscava na escola, levava em médico, estive presente nos momentos difíceis, choramos juntos, demos risadas juntos. Agora este carinho está no papel”, disse Marcelo, que dá um recado aos pais ausentes que negam a paternidade.

“Cara, uma coisa que não deveria existir na Defensoria Pública era esta questão de reconhecimento de paternidade. Deveria ser natural o pai assumir seu papel. Estava tudo tão maravilhoso quando foi feito, porque depois de feito precisa fazer um exame de DNA para comprovar? É seu filho que tem que brigar pela pensão, por um carinho? Você, pai, se sente bem em ver seu filho implorando por atenção e por direitos que deveriam partir naturalmente de você? Eu não admito isso”, avisa. Marcelo, de fato, merece um feliz dia dos pais. E você, também merece?

O que a lei diz sobre obrigações paternas


Constituição Federal/88

A CF/88, no Art. 226, § 5º, dispõe que "os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher", em acordo com o art. 1.631 do Código Civil.

Código Penal

Art. 244: Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 anos ou inapto para o trabalho, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicial. Pena: Detenção de 1 a 4  anos e multa.

Lei 13.058

A lei da guarda compartilhada estabelece que os pais devem decidir em conjunto todas as questões atinentes à vida dos filhos. O tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada entre a mãe e com o pai.

Lei 14.138

A recusa do réu em se submeter ao exame de código genético - DNA gerará a presunção da paternidade, a ser apreciada em conjunto com o contexto probatório.

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