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Manifestante levanta cartaz com os dizeres Manifestante levanta cartaz com os dizeres

STF e Senado consideraram ambos os crimes como inafiançáveis, mas para quem sofre com o racismo de perto ainda há muito o que melhorar

Muitas vezes, um olhar atravessado basta para machucar. Só que a situação nem sempre termina por aí. Essa ação pode ser acompanhada de um comentário maldoso, uma comparação física, uma piada de duplo sentido, aquele funcionário que se recusa a prestar atendimento. E, infelizmente, pode chegar ao ataque direto, com ofensas que causam traumas para a vida inteira.

Para quem vive um episódio desse tipo, a diferença entre injúria racial e racismo é tão subjetiva que praticamente inexiste. Para a Justiça, no entanto, a situação começou a mudar no último mês.

No dia 28 de outubro, o Supremo Tribunal Federal (STF) equiparou a injúria racial ao crime de racismo. No novo entendimento da Corte, ambas as transgressões constituem “crimes inafiançáveis, imprescritíveis e estão sujeitos à pena de reclusão nos termos da lei”.

Corroborando com a ação do judiciário, o Senado Federal aprovou, por unanimidade, na tarde de quinta-feira (18), o projeto de lei que também equipara os dois crimes.

Para isso, será alterado o artigo 140 do Código Penal e aumentada a pena anteriormente prevista para quem cometia injúria. A matéria segue agora para a análise da Câmara dos Deputados.

RACISMO X INJÚRIA RACIAL

Do ponto de vista jurídico, injúria racial e racismo são dois conceitos diferentes.

Injúria racial
–  Quando o agressor ofende a honra de um único indivíduo, cometendo um crime racial contra uma pessoa em específico. Pena atual de 1 a 3 anos de reclusão e multa.

Racismo –  Conduta que diz respeito a todo um grupo social. Um tipo de ofensa que agrida a coletividade, ou seja, o grupo de negros. Está previsto na lei Nº 7.716 de 1989. A lei prevê diversas situações como crime de racismo. Diferente da Injúria, esse crime é inafiançável e imprescritível.

A streamer Ana Beatriz de Souza Almeida, conhecida como Pretawitch, acredita que essa equiparação pode trazer alívio para pessoas que sofrem com esse tipo de violência, mas é tardia. “Demorou muito para isso se tornar uma realidade. As pessoas deveriam ter mais empatia pelo próximo”, afirma.

Pretawitch sofreu preconceito racial em janeiro deste ano, quando um grupo de pessoas desconhecidas entraram em sua live em uma plataforma de streaming. O grupo de racistas tentou fazer com que a streamer, que é umbandista, gravasse um vídeo diminuindo a sua cor e sua religião

“Eles entraram na minha live com nicknames racistas e começaram a me ofender por conta da minha fé e cor. Eu me senti muito mal, criei pânico de sair de casa. Até hoje eu sinto esse medo”, explica.

Outro caso, esse do cotidiano de uma grande metrópole como São Paulo e Rio de Janeiro, é o do fotógrafo Alex Gomes de Miranda. Ele comprou uma Saveiro zero km e, no período de dez dias, foi parado três vezes pela polícia, mesmo com os documentos do carro todos em ordem.

“Na terceira abordagem, eu perguntei ao policial se havia algum problema com a placa, pois não queria ser parado toda hora. Não iria ficar em paz”, diz.

Segundo seu relato, o policial afirmou que não era nada relacionado ao carro, apenas operação de rotina e, muito educadamente, pediu desculpas. “Mas você vê que a situação era porque eu estava em um carro zero, sendo negro e tatuado. A gente sente o preconceito.”

Luz no fim do túnel


O reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, José Vicente, acredita que as iniciativas do STF e do Senado vêm para trazer dignidade ao povo negro. “Quem antes não podia reivindicar qualquer tipo de intervenção na Justiça, agora pode”, afirma. “O crime deixou de ficar impune.”

Para o reitor, o indivíduo agora consegue compreender que o Estado está atento e interessado em sua vida, tomando medidas para combater esse tipo de manifestação na sociedade. “A mensagem que fica para a vítima é: ‘Não desista, porque nós estamos atentos e vamos perseguir de forma vigorosa esse autor dos crimes raciais’”, afirma.

Na visão do advogado especialista em questões raciais Gabriel Oliveira, a equiparação é sim luz no final do túnel, mas ainda não dá para afirmar que a situação melhorará.

Oliveira, que também é membro da Comissão de Igualdade Racial de Barueri (SP), enxerga que houve uma movimentação política para que fosse relativizado o racismo nas últimas décadas. “Por isso, criou-se a injúria racial dentro da injúria, que é uma pena mais branda e relativizadora”, afirma.

“O que eles chamam de injúria racial é o que a gente chama de racismo individual. O racismo tipificado pela lei entendemos como racismo coletivo, que vai ser mais bem explicado na teoria sobre o racismo estrutural. Tudo faz parte do que é a estrutura do racismo”, Gabriel Oliveira, advogado.

Essas iniciativas do STF e do Senado, então, devem ser celebradas, mas é preciso relembrar que também são o resultado de diversas ações que o movimento negro realizou, como protetos, teses e elaboração de estudos. Dessa forma, o que vai determinar a eficácia dessa equiparação ainda é o cotidiano do país.

Registro difícil

O caminho para se conseguir a punição de um ato de racismo ou de injúria racial ainda é bem tortuoso.

A complicação começa ainda na delegacia. Para entrar com uma ação penal, é preciso obrigatoriamente abrir um Boletim de Ocorrência, que dará origem a um inquérito policial.

Quando a investigação é aberta, a parte arrolada como ré será chamada a depor e, a partir daí, a vítima pode entrar com uma queixa crime contra o racista. Um juiz receberá essa denúncia e decidirá se houve crime ou não.

“Às vezes pode acontecer de o delegado interpretar de uma maneira equivocada, ou o escrivão que fizer a redação do B.O.; Eles podem colocar racismo quando é injúria racial ou ou contrário”, afirma Gabriel Oliveira.  “Ou ainda colocar outra coisa, listando apenas como um caso de injúria simples.”

Quando esse equívoco de tipificação acontece, todo o processo pode ser afetado. “Se o delegado colocar como injúria e o juiz entender como racismo, ele pode chegar a absolver o réu por conta da não identificação do sistema penal correto”, afirma o advogado.

A situação mais comum é quando um delegado coloca como crime de racismo, mas o juiz entende que é injúria racial. “O juiz extingue a ação por falta de provas ou por tipificação equivocada”, explica Douglas. “O juiz ainda por desqualificar a injúria como mero aborrecimento, sem enquadrar dentro dos delitos penais. Normalmente é por isso que se tem um número grande de denúncias, mas poucas condenações.”

A streamer Pretawitch acredita que o caso dela se enquadra nessas situações. “Se essa decisão do STF existisse na época do meu caso, não teria surtido o efeito que deveria surtir. O fato de o crime ter sido virtual, eu seria ridicularizada na delegacia por não ter como achar os culpados”, afirma. “Eles usaram bots e contas fakes pra me atacar, o que torna tudo bem mais complicado para rastrear.”

Para o advogado Gabriel Oliveira, esse mecanismo existe para eximir os racistas. “As pessoas que cometem racismo vão se valer da ambiguidade do sistema para se esquivar. Isso a gente vai verificar no número de decisões dentro do judiciário, que raramente condena alguém pelo crime de racismo e injúria”, afirma.

Ainda assim, com o recente respaldo da Justiça, o reitor José Vicente enxerga que não se pode fazer nenhum tipo de concessão em relação a esse direito. “Tem que ir na delegacia, fazer o boletim de ocorrência, denunciar o autor do crime, solicitar reparação de danos. Só punindo a gente ao final vai fazer com que as coisas mudem”, afirma.

Estrutura social

Mesmo com o avanço da equiparação, ainda há uma coisa a ser dita, ou melhor, repetida. É de extrema importância que se realize uma reforma estrutural de mentalidade na sociedade.

Todos os personagens desta reportagem  concordam que muito além da lei e da garantia de punibilidade pela mais alta corte do país, é preciso investir na educação para que situações de racismo não aconteçam.

“A punição severa em casos como racismo é uma manobra perfeita para termos algum tipo de justiça, porém, não seria o mesmo que erradicar o racismo. O homem branco precisa entender que o papel dele na sociedade ainda é enorme, mas precisamos dar espaço para que pessoas negras também tenham voz”, afirma Pretawitch.

“Eu nasci em 1988, e não quero ver meu filho passando pelas mesmas situações que eu. São coisas que já deveriam ter sido extirpadas da nossa sociedade”, diz Gabriel.

“Já fui chamado de tiziu, já fui chamado de macaco, já me chamaram de preto metido. São situações que a gente grava e ficam na nossa memória”, continua.“Mas esses foram os motivadores para eu atuar tanto na questão das etnias brasileiras. Como estudioso e como ativista dentro do movimento negro.”

O fotógrafo Alex também concorda. “As pessoas têm que ter um entendimento do ser humano. A lei está aí para dar respaldo, mas a questão é a educação”, afirma o fotógrafo Alex.

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