Para a antropóloga e cientista política Jacqueline Muniz, a pandemia levou o conjunto da sociedade a experimentar sensações de medo, incerteza e insegurança. E a “instrumentalização” do ódio reforça a ideia de que os indivíduos estão sozinhos. Mas esses sentimentos fazem parte, há muito tempo, do cotidiano das populações que vivem nas periferias.
É o terreno fértil para o crescimento de discursos autoritários e intolerantes, com a falsa promessa de libertação do indivíduo das forças sociais que o oprimem.
“Somos uma sociedade cansada de levar eletrochoques permanentes. De constantes ameaças. Estão nos empurrando para uma espécie de incerteza. Quando falo da insegurança e do medo generalizado, é porque ele, quando instrumentalizado, nos destitui da capacidade de coesão, de encontrar o outro”, afirmou Jacqueline, em entrevista a Marilu Cabañas, no Jornal Brasil Atual desta sexta-feira (18).
Ela é professora do departamento de Segurança Pública e do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos da Universidade Federal Fluminense (UFF). Trabalhou como diretora geral de pesquisa da secretaria de Segurança Pública, auxiliando na criação de órgãos como o Instituto de Segurança Pública e Corregedoria-Geral Unificada. Também atuou na Secretaria Nacional de Segurança Pública, auxiliando na criação de um sistema unificado de dados e estatísticas.
Para ela, segurança é ter expectativa e previsibilidade. “Falar de segurança é ter o amanhã. É sair daqui de casa para comprar uma comida e poder voltar. Segurança é mobilidade socio-espacial. É poder circular pela cidade, e ter ela para si.” Mas tudo isso é tirado da maior parte da população que vive nas periferias.
Língua do medo
Por outro lado, as inúmeras opressões a que estão submetidas essas populações transformam os moradores da periferia em verdadeiros “poliglotas”, segundo a especialista.
“Poliglota é o cara da periferia, que tem que falar todas as línguas. A língua do patrão, da madame, do polícia. Está o tempo todo tendo que apresentar o passaporte, a ‘cidadania de carnê’ que tem que ser comprada a cada esquina. Tem que falar a língua do racista, do homofóbico, se o homofóbico for o patrão dele, por exemplo. Sempre de baixo para cima.”
Para a antropóloga, essa necessidade de se submeter às regras de socialização, somada à precariedade dos serviços públicos essenciais, leva ao aumento da incerteza e da sensação de cansaço emocional e existencial.
A pandemia escancara o medo de morrer, segundo ela. Mas também há o medo de “sobrar”, por não ter abaixado a cabeça o suficiente para se adequar as normais sociais impostas.
“O medo de ter feito tudo certo, abaixado a cabeça, engolido sapo e, no final, ficar no desemprego, na pior, caído. O medo de sobrar e o medo de morrer, que antes parecia uma coisa exclusiva da pobreza, da periferia – daqueles aos quais a gente excluiu do cercado VIP – todo mundo está experimentando”, afirmou.
Sociedade do “deslike”
Sem coesão, a sociedade brasileira abandona o diálogo, a construção de vínculos e a pactuação.
O “unitário”, de acordo com a especialista, toma o lugar do “comum”.
“E, então, fazemos a política do quem ama bloqueia. É uma sociedade do deslike e do cancelamento. Para saciar o apetite autoritário do eu cancelo, eu posso. Essa política aprendida em emoticons e emojis, e também no Big Brother. É uma política que não dialoga, que tem dificuldade em lidar com a diferença e com a diversidade.”
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