Cemitério Jardim da Eternidade, na Gleba H (Foto: Reprodução)
Um áudio de 4:21 minutos, enviado para a redação do Camaçari Fatos e Fotos. É uma reunião, provavelmente gravada sem o conhecimento dos organizadores. O tema é... É difícil estabelecer um juízo de valor e dizer, à primeira vista, se é certo ou errado, de todo: exumação de cadáveres, sem autorização ou conhecimento da família. 2.000 deles. Para abrir espaço aos novos corpos que chegarão em breve.
No áudio, apenas alguns nomes são citados e não é possível atestar quem é o dirigente do encontro, mas fica claro que é uma reunião entre gestores da Secretaria de Serviços Públicos de Camaçari (SESP) e coveiros, onde é passada a decisão de realizar a abertura de 2.000 gavetas funerárias, apenas no Cemitério da Gleba H. O motivo: o índice elevado de mortes e o risco de faltar túmulos no maior cemitério da cidade.
É uma história com tantos lados diferentes e todos tão ruins que seria impossível dizer qual é pior.
O lado dos coveiros
O áudio foi divulgado porque, para executar a tarefa de exumar tantos corpos, foi necessário mobilizar uma força-tarefa, realocando coveiros de outros cemitérios da cidade, para uma jornada ampliada e, segundo denúncia, sem a remuneração ou os Equipamentos de Proteção Individual (EPI) adequados.
Junto com o áudio, foi divulgado um texto que denuncia o cenário crítico e revela o medo. "Cerca de 18 coveiros estão sendo redirecionados para o cemitério da Gleba H, em Camaçari, para fazer cerca de 2500 (DUAS MIL E QUINHENTAS) exumações. O processo de exumação está marcado para dar início nesta Quinta-feira (18/03), sem prévio aviso de seus familiares", diz o texto.
Ainda segundo o texto, os profissionais estariam sendo expostos a trabalhar em condições precárias e perigosas, "já que para fazer sepultamento de COVID-19, os EPI's não estão devidamente adequados, quanto mais para fazer exumação". Também segundo a denúncia, o trabalho seria executado sem direito ao adicional de 40% de periculosidade, baixado para 20% e sem receber horas-extras.
O lado das famílias
O Código Penal Brasileiro tem um capítulo específico sobre crimes contra o respeito aos mortos. O Capítulo II, Art. 210, estabelece: "Violar ou profanar sepultura ou urna funerária: Pena - reclusão, de um a três anos, e multa." Já o Art. 211, impõe: "Destruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele: Pena - reclusão, de um a três anos, e multa."
Em outras palavras: violar sepulturas, sem a devida autorização judicial ou familiar, é crime, passível de multa e prisão. E não há nada na legislação que autorize gestores de cemitérios a agir de forma desautorizada.
Fora a questão legal, existe a questão emocional: chegar no cemitério, um dia, e descobrir que o túmulo de um ente querido não apenas foi violado, como os restos mortais foram eliminados, completamente à revelia da família.
O lado da gestão municipal
Violar sepulturas é crime e uma gestão municipal não deve cometer crimes. Assim como suprimir direitos trabalhistas também. Isso posto, pelo que é falado na reunião nota-se uma preocupação séria e válida: a possibilidade de faltar túmulos, diante da demanda constante e crescente.
Pelo que é falado nos áudios, é possível conclui que a reunião foi realizada em fevereiro, pouco tempo depois de um pico de 13 sepultamentos em um dia, seguido de um de 10 sepultamentos.
"Então, se vocês for nessa pegada, até que não tenha nenhum hoje, mas se você for nessa pegada, 10, 11 e você só tem 40, vai chegar lá e não tem lugar. Então, prioridade Gleba H." (sic), diz o homem que comanda a reunião.
A previsão dele não se concretizou em fevereiro. De acordo com o Portal da Transparência do Registro Civil nacional, em Camaçari, no mês de fevereiro, ocorreram 138 mortes. No entanto, em março, até esta quinta-feira (19) já foram 195 óbitos registrados. 195 sepultamentos. De fato, uma média de 10,5 por dia.
Se continuar nesse ritmo, serão mesmo 300 mortes em um mês. Muito acima da média da cidade. Para se ter uma ideia, o mês com maior número de mortes em Camaçari, em 2020, foi junho, com 146. Se a gestão municipal não se preparar, o sistema funerário vai entrar em colapso.
O lado da vida
Há um tipo de aglomeração que realmente deixou de acontecer durante a pandemia: cortejos fúnebres. Sem as procissões levando caixões pelas ruas, durante as quais comércios baixavam as portas e transeuntes abaixavam a cabeça em respeito e condolências, as mortes não mais vistas pela cidade.
As perdas são resumidas a estatísticas e números em matérias de jornais. Um ou outro tem sua foto mostrada, mas, para a maioria, a dor e a perda ficam restritas aos seio da família. Essa invisibilidade faz parecer que o número de vidas perdidas é bem menor do que realmente é. Não há mais o impacto de ver a dor do outro.
Assim como as mortes, as filas à espera de uma Unidade e Terapia Intensiva (UTI) também não aparecem. Assim como também não aparecem, desde o início da pandemia, as pessoas que sofrem e morrem por doenças diversas.
195 mortes, das quais 45 foram causadas por covid. 150 mortes que não aparecerão nos jornais nem nas estatísticas da pandemia, mas, não há de ser coincidência que, no pior momento que a cidade vive em relação à covid-19, seja também o momento com índice de mortes por outras causas mais alto desde o começo da pandemia.
Mesmo assim, mesmo em um cenário incerto, há coisas que não podem ser negociadas ou negligenciadas. A responsabilidade do poder público é uma delas.
Abaixo, a transcrição do áudio, para que você, leitor, tire suas próprias conclusões.
HOMEM 1:
- A prioridade, a prioridade mesmo é fazer essa exumação e fazer essa força-tarefa, pra a gente fazer esse trabalho aí.
A gente vai precisar de todos os coveiros, porque nós não temos nem chance, nem condição de fazer contratação agora, porque, vocês sabem, a pandemia atingiu a todos, na economia e atingiu a todos, então não pode fazer licitação nenhuma agora.
HOMEM 2 (provavelmente Namuciés):
- Aí é o senhor, que é o coordenador, que diz, "oh, Namuciés, eu acho que com cinco pessoas dá pra fazer".
HOMEM 1:
- Mas eu acho, Namuciés, que é melhor pegar os 20 e fazer, que é mais rápido.
(uma mulher ao fundo sugere que a exumação seja feita em todos os cemitérios)
HOMEM 1:
- Foi até ontem, na reunião que eu tive com Josenaldo e a secretária, foi dito isso. Só que a demanda maior que tá tendo é aqui no Gleba H. Josenaldo, se eu estiver mentindo, ele pode até falar. É 9, 10, 7, 6 todos os dias. Ontem de manhã foi quantos?
HOMEM 3 (provavelmente Josenaldo):
- Ontem, ao todo, foi 11.
HOMEM 1:
- Então, se vocês for nessa pegada, até que não tenha nenhum hoje, mas se você for nessa pegada, 10, 11 e você só tem 40, vai chegar lá e não tem lugar. Então, prioridade Gleba H. E depois a gente vê onde é que está...
HOMEM 3:
- ...a segunda maior demanda. Só agora no mês de fevereiro, se continuar como está aí, nós vamos fechar uma média de 300 sepultamentos.
HOMEM 1:
Se for nessa demanda aí E observa, se você fizer as contas de 10 por dia, só aí já da 300 e tem dia que está batendo mais do que isso, então, segunda-feira mesmo como eu falei foi 13. Foram 13, só na segunda feira. Então, vai ser aí em torno de 300 ou mais sepultamentos só agora no mês de fevereiro. Então, nós estamos selecionando aí em torno de 2.000 gavetas para serem abertas. Na Gleba H nós temos 9.352 gavetas. Dessas 9.000 nós estamos selecionando ai 2000 pra abrir, porque como o diretor acabou de dizer , não há previsão de construção de novas gavetas, mesmo porque já começa pelo seguinte: espaço na Gleba H está limitado.
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