O Brasil encontra-se dividido entre as pessoas que pensam como nós (os bons, inteligentes e honestos) e as que pensam diferente de nós (os maus, burros e corruptos)
A frase que encima essa coluna é de Iacyr Anderson Freitas, um dos maiores poetas brasileiros contemporâneos. Ela revela bem o estranho e perigoso momento que estamos vivendo, no qual posicionarmo-nos em relação a todo e qualquer assunto, dos mais singelos aos mais polêmicos, tornou-se um exercício complexo. A sociedade brasileira encontra-se dividida em duas porções, a das pessoas que pensam como nós (os bons, inteligentes e honestos) e a das que pensam diferente de nós (os maus, burros e corruptos). A partir desse dualismo primário temos redefinido nossas amizades, amores e visão de mundo. Aceitar isso, no entanto, é trilhar o caminho pantanoso da mediocridade.
Recentemente, voltando de uma viagem de trabalho a Macau, ouvi, no trecho entre Dubai e São Paulo, um homem de seus trinta anos explicando à jovem argentina que regressava a Buenos Aires após o intercâmbio de um ano na Austrália, que a principal característica dos brasileiros era a tolerância. Decerto, ele buscava impressionar a moça com uma conversa mais intelectualizada e evocava a favor de seus argumentos todos aqueles estereótipos autocomplacentes que usamos para absolver as nossas mazelas, a “democracia racial”, a “alegria”, a “liberdade sexual”, a “diversidade da composição étnica”, etc.
Se pudesse interferir na conversa deles – o que não fiz – teria perguntado se podemos classificar de tolerante uma sociedade racista (que discrimina os descendentes de africanos e os índios), machista (cerca de cinco mil mulheres mortas por ano, o quinto maior índice de feminicídio do planeta), homofóbica (líder mundial de assassinatos de homossexuais), xenófoba (no caso, nossa intransigência é seletiva, apenas contra imigrantes pobres), e também, descobrimos há não muito tempo, fascista. Porque é uma atitude autoritária tentar impor nossas opiniões ao outro, e, quando frustrados, procurarmos desclassificar agressivamente nosso interlocutor. O totalitarismo não tem lado – ceifa à esquerda e à direita com a mesma intensidade.
O dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues definiu certa vez o Brasil como a “pátria de chuteiras”. Dizia-se, na década de 1970, auge do futebol nacional, que éramos 90 milhões de técnicos, tal a paixão despertada pelo chamado esporte bretão. O país mudou, o futebol entrou em decadência, e transferimos e aprofundamos nosso ardor para a política. É no campo de batalha da internet que exercitamos hoje o papel de julgadores de nossos adversários, tornados de maneira sumária nossos inimigos. Envergando a toga da intolerância e sentados na cadeira das certezas absolutas, avaliamos implacáveis uns aos outros, condenando, cegos pelo ódio e pelo ressentimento, todo aquele que de nós ousar divergir, mesmo que minimamente.
O presidente Getúlio Vargas, que chegou ao poder por meio de um golpe de estado em 1930, renovado em 1937 com a instituição de uma ditadura, implementou sob seu governo uma legislação trabalhista e introduziu o Brasil na era industrial, criando as bases da nossa modernidade. O cognominado “pai dos pobres” administrou o país com mão de ferro, perseguindo os opositores – principalmente os comunistas – e entupindo as cadeias de presos políticos. Vargas tinha como lema “aos amigos, tudo, aos inimigos o rigor implacável da lei”, prática que parece revivida nos tempos que correm.
Quando crianças, ainda despidos de uma bagagem emocional e intelectual mais sofisticada, tendemos a separar as coisas do mundo em pares antagônicos para melhor entendê-lo: o dia e a noite, o doce e o salgado, o frio e o quente, o mocinho e o bandido. Trata-se de uma visão egocêntrica e rudimentar, que entretanto se transforma e diversifica à medida em que nos tornamos adultos. O problema é que nós, os brasileiros, por algum motivo, permanecemos confinados a essa visão infantilizada e binária que nos impede de enxergar algo que até a autora de best-seller erótico Erika Leonard James já descobriu: entre o preto e o branco há pelo menos 50 tons de cinza...
Comecei esse artigo evocando um poeta, termino citando o escritor Jeferson Tenório, que em artigo no jornal Zero Hora, sentenciou: “Em tempos de ódio, parece que nossa melhor saída é a transgressão pelo afeto”.
Luiz Ruffato é jornalista e escritor.
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