Imagine uma família de quatro pessoas, vivendo em uma pequena casa alugada, lutando para pagar suas contas básicas enquanto vê suas dívidas crescerem mês após mês. O pai perdeu o emprego durante a pandemia, e a mãe tem seu salário comprometido com empréstimos feitos para cobrir despesas emergenciais. As crianças precisam de material escolar, alimentação adequada e roupas, mas o orçamento apertado não permite mais do que o essencial. Esse é um dos retratos possíveis de muitas famílias brasileiras que enfrentam o drama do superendividamento.
O superendividamento é um problema crescente no Brasil, afetando milhões de famílias que enfrentam dificuldades para pagar suas dívidas sem comprometer o básico necessário para uma vida digna. Esse fenômeno é caracterizado pela incapacidade de um indivíduo, que age de boa-fé e é consumidor, de pagar todas as suas dívidas de consumo atuais e futuras sem prejudicar o mínimo existencial. Essa situação exclui dívidas tributárias e provenientes de relações familiares (por exemplo, pensão alimentícia).
De acordo com a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC) realizada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) em junho de 2023, 78,5% dos núcleos familiares do país tinham dívidas, o maior índice desde 2010. Esse dado mostra a magnitude do problema, que não é apenas econômico, mas também social, afetando diretamente a saúde mental e o bem-estar das famílias brasileiras.
A Lei nº 14.181/2021, conhecida como a Lei do Superendividamento, foi criada para combater esse problema. Ela trouxe importantes mudanças no Código de Defesa do Consumidor, estabelecendo medidas de prevenção e tratamento para evitar que os consumidores fiquem presos a um ciclo de dívidas impagáveis.
Um dos pontos centrais da lei é o conceito de “mínimo existencial”, que se refere ao valor mínimo de renda que uma pessoa deve ter para garantir uma vida digna. Esse valor foi inicialmente fixado em R$ 600,00, segundo o Decreto nº 11.567/2023. No entanto, muitos especialistas criticam esse valor, argumentando que ele é insuficiente para cobrir as necessidades básicas de uma família brasileira.
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) tem se destacado na implementação de medidas para tratar e prevenir o superendividamento. Uma dessas iniciativas é o Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania Superendividados (CEJUSC-SUPER), que oferece um programa de educação financeira, orientação individual e conciliação com credores para ajudar os consumidores a reorganizar suas finanças.
A aplicação prática da Lei nº 14.181/2021 ainda enfrenta desafios, especialmente devido à falta de uniformidade nas decisões judiciais e à necessidade de procedimentos claros e detalhados para a repactuação de dívidas. A experiência do TJDFT e de outros tribunais mostra que a criação de fluxos processuais e a promoção de acordos entre credores e devedores são passos importantes para melhorar a eficácia da lei.
No procedimento do superendividamento, o primeiro passo é a fase pré-processual, que inclui uma etapa conciliatória obrigatória. Nessa fase, realiza-se uma audiência de conciliação com todos seus credores. Se um acordo for alcançado, é elaborado um plano de pagamento consensual. Caso contrário, inicia-se a fase processual, na qual poderá ser homologado um plano de pagamento compulsório pelo Juízo, que estabelecerá a forma de pagamento das dívidas em seu valor integral.
A prevenção do superendividamento passa, necessariamente, pela educação financeira e pelo consumo responsável. Programas educacionais que ensinam boas práticas de gestão financeira são fundamentais para evitar que os consumidores caiam na armadilha das dívidas impagáveis e se conscientizem sobre a importância de um planejamento financeiro adequado.
Além da educação financeira, é essencial promover políticas públicas que incentivem o crédito responsável. Isso inclui a regulamentação mais rigorosa das práticas de concessão de crédito por parte das instituições financeiras, garantindo que os consumidores recebam informações claras e transparentes sobre os termos e as condições dos empréstimos.
Em conclusão, a Lei nº 14.181/2021 representa avanço significativo na proteção dos consumidores superendividados, mas sua aplicação ainda requer ajustes e aprimoramentos. A leitura da Nota Técnica 12/2024 do TJDFT pode oferecer uma visão mais detalhada sobre os desafios e as soluções propostas para enfrentar o superendividamento. Além disso, é essencial continuar investindo em soluções autocompositivas e em programas de educação financeira para prevenir a repetição do superendividamento e promover uma sociedade mais equilibrada e financeiramente saudável
Luciana Yuki F. Sorrentino
Luciana Yuki é juíza de direito do TJDFT, doutoranda em direito e mestre em administração pública. Atua como coordenadora do Centro de Inteligência da Justiça do Distrito Federal.
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