O engenheiro Damião estava divorciado há quatro anos quando na bela praia do Farol, em Mosqueiro (esquecida, deslembrada pelos paraenses e uma das mais belas do Brasil, com a Ilha dos Amores no seu entorno), conheceu a jovem bancária e estudante de turismo Antonella, de família do baixo-amazonas, cujos antecedentes vieram da Itália. O namoro começou logo e evoluiu para uma relação mais íntima. Passaram a viver juntos, debaixo do mesmo teto, embora Damião se recusasse a casar, apesar da insistência de sua mulher, alegando que não queria ter uma segunda experiência matrimonial, considerando que a primeira havia desmoronado.
Estavam os dois, assim, numa união estável, cumpridos todos os requisitos do art. 1.723 do Código Civil, sendo o regime de bens dessa entidade familiar o da comunhão parcial de bens. Passaram-se cinco anos.
Damião já tinha três apartamentos e era titular de quotas de empresa antes de começar seu envolvimento com a companheira. Durante a existência da convivência, adquiriu o apartamento em que viviam e os dois tinham uma conta conjunta bancária no valor de cem mil reais.
O companheiro veio a falecer, em fevereiro passado, vítima de uma doença cruel e insidiosa, diagnosticada apenas seis meses antes. Não tinha filhos, seus pais já haviam falecido, de forma que, nos termos do art. 1.790 do Código Civil, que regula a sucessão dos que constituem família na modalidade união estável, a companheira sobrevivente só tem direitos hereditários sobre os bens adquiridos onerosamente durante a convivência.
Apareceram, imediatamente, três irmãos do falecido - com os quais, por sinal ele mantinha um relacionamento distante, quase protocolar - e propuseram fazer com Antonella o inventário e partilha extrajudicial da herança, seguindo o que prescreve o aludido art. 1.790 do Código Civil. Em síntese, os irmãos do "de cujus" ficariam com os três apartamentos e com todas as quotas da empresa, bens que ela já tinha antes de se relacionar com Antonella. Por sua vez, quanto ao apartamento que foi comprado durante a convivência, e ao dinheiro que estava no banco, a companheira era titular da metade (como meeira) e a outra metade desses bens (que representa a herança) seria dividida entre ele e os irmãos do falecido, na proporção de uma terça parte para a companheira e duas terças partes para os três irmãos. Realmente, o art. 1.790 é tenebroso!
Desde que o Código Civil foi promulgado, em 2002, tenho declarado, em vários escritos, que esse art. 1.790 do Código Civil representa uma barbaridade. É preconceituoso, injusto, desumano, trata a família constituída informalmente como se fosse de segunda classe, estando fulminado de uma flagrante inconstitucionalidade. Mas está em vigor por todos esses anos, causando injustiças gritantes.
Os irmãos de Damião acertaram com a companheira sobrevivente a elaboração de uma escritura pública de inventário (extrajuducial) em que promoveram a partilha dos bens naquela forma acima mencionada. Antonella ficava com uma parte bem pequena, uma quantidade diminuta dos bens deixados pelo companheiro. Mas, até porque não tinha emprego nem rendas, estava muito ansiosa, carente, precisava pagar algumas dívidas e iria receber dos cunhados uma importância relativa ao dinheiro a que tinha direito, a companheira, no dia 30 de agosto deste ano, uma terça-feira, acompanhada de seu advogado (um primo que resolveu ajudá-la, gratuitamente), compareceu ao cartório para assinar a aludida escritura, realizando a partilha e fechando o inventário dos bens deixados pelo falecido. Mas os outros herdeiros não apareceram e, angustiada, ela telefonou para um deles, que, com insolência e altivez, respondeu: "tivemos um compromisso mais importante e não vamos assinar nada hoje. Pode ir embora. Vamos avisar quando poderemos assinar a escritura".
Na quinta-feira, 1º de setembro, logo de manhã, cedinho, o irmão que havia dado aquela resposta arrogante, com voz doce e simpática, agora, informou que todos estavam resolvidos a assinar a escritura, convidando Antonella para comparecer às 10 horas, no Cartório. A mulher ficou intrigada, mas emocionada com a inesperada gentileza. Então, ligou para o seu primo, advogado, e foi surpreendida com o que ele disse: "Você não assistiu ao"Bom Dia Brasil", hoje? Pois fique sabendo que ontem, quarta-feira, o Supremo Tribunal Federal começou o julgamento da ação que pretende que o art. 1.790 do Código Civil seja declarado inconstitucional. A decisão foi adiada por um pedido de vistas, mas já sete dos onze ministros anteciparam seus votos pela inconstitucionalidade, o que parece irreversível, e a sucessão dos companheiros, segundo definido, seguirá as regras do art. 1.829 do Código Civil, que disciplina a sucessão dos cônjuges. Isso vai mudar a sua situação de forma radical e para muito melhor".
Quando o irmão do falecido - já ele aflito, nervoso - voltou a telefonar para Antonella, dizendo que estavam todos os três irmãos aguardando por ela no cartório, orientada pelo advogado, respondeu: "Peçam aí um cafezinho para o notário, e esperem sentadinhos, confortáveis, que não vou mais assinar coisa alguma. Aguardo a decisão final da ação que o Supremo está julgando, como devem estar sabendo. A se confirmar o que já disseram sete dos onze Ministros, eu serei a única herdeira de Damião e vocês, parentes colaterais dele, ficarão afastados da herança. E passem bem".
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P. S. Meu amigo professor Emílio Nobre passou uma semana em Portugal, ciceroneado pelo procurador e também professor Frederico Oliveira, fazendo contatos com vistas ao curso de doutoramento na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, uma das mais prestigiadas da Europa. Teve a gentileza de me trazer os livros de Direito de Família e de Direito das Sucessões, enviados por meu amigo e civilista eminentíssimo, ex-diretor daquela Faculdade, Jorge Duarte Pinheiro. Vou dizer no jeito lusitano: obrigadíssimo.
Por Zeno Veloso. Doutor Honoris Causa pela Universidade da Amazônia. Diretor do IBDFAM para a Região Norte. Professor da UFPA e da UNAMA. Tabelião em Belém.
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