A morte dela se deu esse mês, no dia 12, e essa homenagem era para ter sido imediatamente ao recolhimento dessa, que classifico como uma flor humana que tanta saudade deixará no jardim de não poucos corações, filha de Deus; e assim teria sido não fosse a invasão cibernética feroz que sofreu esse portal, o deixando por vários dias fora do ar e que ainda passa por ajustes. Mas aqui está. Porem me aterei a apenas dois episódios, dos incontáveis, que revelam aos que não a conheceram mais de perto, o grau de humanidade que carregava o coração de dona Maura da Silva - para mim, minha eterna “dona Gorda”. Ela que, inegavelmente, foi mãe de muitos filhos de tantas outras mães, não à toa me chamava de filho.
- Era coisa duns quase 40 anos atrás, eu com então 20 e uns, quando fui detido “injustamente” no antigo módulo da Policia Militar da Praça Abrantes, por policiais que teimaram que eu havia dado “na cara deles”, um cavalo de pau, com meu carro, uma “discreta” Brasília amarelo-canário (entre o módulo e a antiga biblioteca havia uma rua curva). Digo, porém, que a “prisão” havia sido injusta, posto que apesar de o cavalo de pau ter realmente acontecido, e isso de fato com minha manjada Brasília, eu não estava ao volante, e nem mesmo estava dentro do carro, mas sim o finado Messias, filho do finado Edmundo do Camaçari de Dentro; que havia tomado de mim o carro emprestado, feito a maluquice dele e se picado sem que se distinguisse que não havia sido eu o ‘mautorista’. Mas porque as aspas na palavra Injusta? Por que a injustiça fora apenas em parte, haja visto que eu havia “dado testa” aos policiais, com argumentos que confrontavam sim a abordagem truculenta à minha pessoa – eles fazendo aquilo decerto que convictos que deviam estar de que estavam mesmo diante do tal infrator, o que aumentou ainda mais a resistência deles aos meus argumentos, o que muito me irritou, onde acabei por chamá-los de “animais” [aqui, de novo, pela Instituição, e pelos policiais exemplares que nela há, meu sincero pedido de desculpas], xingamento que fiz, com a intenção, agora sim, de irritá-los, como eu disse, indignado que eu me encontrava com tanta resistência bruta aos apelos dum cara seguro e que tanto tentava dar exemplos de sua inocência sem conseguir, atitude que agora legalizava minha detenção. E para piorar, tendo invocando o nome do velho Deosdedith Ribeiro, vereador que na época gozava de grande prestígio na sociedade camaçariense, e visto a reação titubeante dos PM’s diante do nome daquela pessoa saindo da minha boca, e percebendo que a intenção dos caras era me humilhar perante as pessoas que se aglomeravam à frente do módulo, eu ainda resisti ao extremo, como de fato não sentei, à ordem para que eu sentasse no chão do módulo. Nem eles insistiram mais para que eu sentasse no chão, até a chegada da viatura, que fatalmente me levaria para ao xadrez.
Agora preocupado com a possibilidade de ter que dormir na cadeia, eis que me aparece, às 3 da madrugada, enfiado num pijama mijão, ninguém menos do que o vereador Deosdedith em pessoa. Quem o chamou eu não sei. Só sei que ele estava lá.
- “Libere o ‘minino’, que ele é arrimo de família. E fui eu ki criê... fui eu ki criê...!”. Essa última frase repetida, que deveria ter como intenção dizer que se foi ele que havia me criado, naturalmente eu terminantemente não seria nenhum desordeiro - pelo menos foi isso que passou pela minha e creio que também pela cabeça dos PM’s, logo adiante eu perceberia que não era nada disso. Fato é que, em menos de 2 minutos eu estava sentado no banco de trás do velho – na verdade novo – e bom Chevete 1984. Na frente, completamente calado, ia ele e o sobrinho de Dona Maura, Isaltino, ou simplesmente Zá. E aquele silencio, confesso que me enganou visto minha equivocada avaliação de que, se ele, que sempre esbravejava quando se via diante do menor malfeito, estava calado, estaria tudo bem ele ter sido acordado no meio da madrugada para ir me tirar de dento dum modulo policial. Ledo engano: carro parado na porta, e quase a Coronel Moreira César toda acordada e em pé na frente da casa – era umas 8 a 10 pessoas, mas parecia mesmo a rua toda, se minha expectativa era a de que o vexame não seria tão grande, contando que não haveria ninguém da rua acordado devido o horário. Então, ao pôr o primeiro pé no chão, eis que ele dispara, com sua peculiar voz nada discreta, que devido ao silencio da hora mais pareceu o repique duma sequência de ronco de trovoada, e daqueles másters: “Aê, Maura... esse corno... me acordar uma hora dessas... esse corno... a culpa é sua Maura... a culpa é sua...!”. Parecia que ele vinha o caminho todo inchando e enchendo o peito de ar, para então expressar todo o seu descontentamento com aquilo nos ouvidos da pobre esposa que, mesmo diante do erro que fosse, sempre fazia o papel de mãe de tantos filhos que nunca pariu.
A culpa atribuída à dona Gorda, porém, apesar de naquele episódio em especifico a menor das conjecturas me obrigar a pensar que, ao tocar o telefone – daqueles antigão do fio de mola que tinha um toque ensurdecedor, e ainda mais tocando de madrugada, foi ela que, ao saber da situação, chorosa, apelou a ele que fosse me socorrer [Vai, ‘Dete’, vai ver o que foi], com sua voz sempre mansa, doce (olhos cheios d’água aqui), é como eu te disse, que de fato não era por causa da situação daquela noite que ele à culpava, e sim por causa das incontáveis interseções dela frente a ele em favor da ruma de menino, filhos doutras tantas mães, e algumas mães que nem sempre conseguiam alimentar direito alguns dos filhos, à exemplo da minha, quem sabe por ele pensar que houvesse entre nós alguns que pudesse vir a desencaminhar suas crias, e também, ainda, vá saber, no caso das meninas, em defesa das suas filhas, duas delas adolescentes, às guardando de todos nós que vivíamos ali, à sombra da amizade com os filhos legítimos da casa.
Envergonhado, e meio que sem querer sair de dentro do carro até que ele entrasse na casa, ao vê-lo dobrar a quina da parede desci e, ao me pôr no rumo de quem iria para a minha casa na Lama Preta, eis que escuto dona Maura, que acabara de tomar um baita dum esporro do marido por minha causa, quase sussurrando: “Volte, pra onde você vai? É perigoso, essa hora; entre quietinho, durma no quarto dos meninos, de manhã você vai”. E assim eu fiz. Se teve resenha ou se Téo e César me faria alguma pergunta de como foi ou o que foi, eu não esperei pra saber: ao vir o claro do dia por debaixo da porta, me piquei. Mas passado uns três ou quatro dias, lá estava eu na casa do velho “Dió”, onde uns anos atrás, um pouco longe dali, e aqui vai a origem de tudo - eu com uns 14 ou 15 anos – no que eu realmente acredito que foi donde nascera toda zanga dele comigo, sem aguentar bater o zói num certo objeto laranja - quem se lembra sabe que se tratava do chaveiro da chave do carro, não media distancia para catar a chave e pular dentro do seu xodó, o famoso Chevete, para aprender a dirigir, e sumia no mundo com o carro. Contar quantas vezes foram, nem a cara dele ao saber que eu havia escapulido com o seu carro, eu realmente não conseguiria. Mas calcular que não foram poucos os esporros que Dona Gorda levou a cada vez, é fácil. E sem dúvida que ela sempre no apaziguamento. E por que você acha, que mesmo com tantas peraltices, eu jamais deixei aquela casa até os dias de hoje, tendo visto os últimos dias de vida tanto dela agora – em termos, quanto dele anos atrás, senão pelas tantas e incansáveis interseções dela a meu favor e a rendição dele aos apelos dela? E deu resultado, visto que pouco tempo antes de ele falecer, pus os dois, ele e ela, no meu carro e saí correndo a cidade toda, lhes mostrando as mudanças que na época, já velhinhos e ele já adoentado, eles ainda não conheciam, na gestão do então prefeito Luiz Caetano, os levando a se encantarem com um encanto que contagiou a todos que passavam pelo carro, inclusive a mim, vendo os dois, parecendo duas crianças deslumbradas com o brinquedo novo, de pé na porta do veículo, comentando, extasiados, quando paramos na frene do prédio da Cidade do Saber. Ali, Deosdedith Ribeiro, que apesar da cara feia que fazia em ocasiões como a que descrevi, mas que jamais conseguiu esconder o tamanho do coração que carregava no peito, e que já não dizia a Dona Maura que a culpa era dela, visto eu ter me tornado o homem que me tornei, visto que ele, a quem eu não deixava de observar a conduta como pessoa, e que muito teve participação nisso, fazia um bom tempo que já havia me recebido no seu coração como amigo de seus filhos e sem dúvida que amigo dele também.
E no outro episódio, tratou-se duma situação em que, uma parte da velha e boa ruma de meninos – nesse dia eu, porém, não estava, em que ouviu-se um barulho vindo da varanda. Na sala da casa todos assistiam um filme. Era início da madrugada. O barulho era dum cara tentando roubar uma das bicicletas de um dos garotos. Agora imagine a cena: um monte de adolescente com um ladrão que tentava roubar um deles, cravado nas unhas. Teria sido um pequeno massacre. O cara até chegou a levar umas duas bordoadas. Mas eis que, quem aparece na hora? Justamente: dona Maura. “Não batam nele não... ô meu filho... por que você está fazendo isso...?’’, perguntava ela ao ladrão. E o “discarado”, conforme me contou Téo, disse a ela que roubava porque estava com fome. E não deu outra: sob protesto de todo mundo, ela levou o ladrão para a cozinha, o botou sentado e deu comida. Aí já era algo em torno de 2 horas da madrugada. Essa era Dona Maura da Silva.
Passado uma semana de sua morte, ao ligar para Téo já um pouco distante do dia em que os sentimentos estavam muito aflorados, ele até me contou que em algum momento, durante o velório, algum dos garotos que ela havia adotado, e que certamente também a fizera levar um monte de esporro do marido por causa dele, de quem não me recordo o nome, ao ser convidado por outra pessoa para irem vê-la, o moço disse: “Eu não, que ela não está mais ali. E a uma hora dessas ela já deve ter levado uns três esporros de Seu Deosdedith”. Todos rimos. Tanto quem ouviu o rapaz dizer isso na hora, quanto eu e Téo Ribeiro ao telefone, visto que, ouvindo coisas assim, é impossível não voltarmos no tempo.
E eu concordo com o moço que não quis ir vê-la no caixão. De cá, eu prefiro ficar com essas lembranças. Aqui até deixo o abraço a cada um dos da família original e da agregada, que não fui dar no dia da despedida dela, como disse à Maria, a filha mais velha, que a vontade era de ir e também de não ir. Como, por não querer vê-la morta, lá eu não fui.
E, claro que, se Dona Maura da Silva foi o exemplo de mãe que foi, e já que tudo que acontece passa diante da face de Deus, não passou ao largo de mim, e talvez de mais pessoas também não, ela não ter sido chamada por Ele para Seus braços num mês melhor do que o Mês das Mães – com o detalhe de que isso não ocorreu quatro dias antes, mas quatro dias depois do dia da celebração, para que a despedida com os seus 05 rebentos naturais não deixasse de acontecer, o que vejo como presente de Deus para os seis, a mãe e os filhos.
Para sempre te amaremos, mãezinha - em nome de todos os seus filhos que não eram seus.
Antônio Franco - Ribeiro da Silva
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